quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Puranas e Itihasas - A Narrativa Literária e Seu papel na Emancipação Espiritual do Indivíduo


Creio que cada um de nós tem em sua memória a lembrança de uma doce figura que embalava suas noites de sono com (hi) estórias, contos e fábulas ainda na infância. Eu mesmo me recordo das fábulas, canções e narrativas religiosas contadas e cantadas por minha avó com muito carinho. Embora a tradição de sentar-se juntinho das crianças para contar (hi) estórias pareça ter perdido seu lugar para os encantamentos da running way of life em que vivemos, tal sumiço não ocorreu despercebido por muitos – e isso explica o fato recente de muitas correntes psico-pedagógicas enfatizarem a importância da narrativa literária no processo educacional infantil[i].

A verdade é que o papel da(s) narrativa(s), enquanto discurso, na construção da identidade de um indivíduo surge na mais tenra infância, porém não para por aí. Ao longo de nossas vidas, formulamos os relatos de nossas origens culturais e das crenças que nos são mais caras sob a forma de histórias, e não é apenas o “conteúdo” dessas histórias que nos atrai, mas seu artifício narrativo[ii].

A acentuada função e atuação da(s) narrativa(s) também podem ser percebidas através de sua utilização diversa pelos meios de entretenimento e de cultura da qual nos cercamos. Como por exemplo, as narrativas cinematográficas, literárias, visuais, auditivas e etc., e, da auto-narrativa que estabelecemos na forma de diálogos e/ou monólogos internos - que constituem um dos meios pelos quais fortalecemos nossos condicionamentos (vrittis) ou nos libertamos dos mesmos.

Quanto ao papel dos épicos, fábulas e contos na educação de um indivíduo e na transformação deste em um ser espiritualmente emancipado, a cultura milenar da Índia desde sempre se mostrou perita no assunto.

Desde a narrativa oral à escrita, da literatura védica às produções literárias budistas, encontramos uma cultura onde o papel dos tipos de narrativa é servir de ponte (setu) entres as etapas da vida experimentadas pelo individuo (nascimento, infância, juventude, velhice e morte) e os estados supramundanos de consciência.





Origem e importância dos Puranas e Itihasas

A tradição conta que motivado pela compaixão e compreensão de que na atual era de Kali os seres humanos em geral seriam destituídos de 1. boa memória e 2. prévias qualificações para o estudo aplicado do Vedanta, Veda Vyasa compilou os Itihasas e Puranas – textos compostos de narrativas históricas e dos feitos dos heróis – com o objetivo de instruir a maior parte da população nos mesmos valores superiores preconizados pelas Upanishads[iii].

A importância fundamental do conhecimento védico (shabda-brahma) ser transmitido na forma de narrativas históricas - como encontradas nos Puranas e Itihasas - pode ser facilmente compreendida ao constatarmos que não há quem não se deleite com um bom épico, um romance, um conto cheio de encantos e repleto de significados. Somos capazes de ficar horas a fio ao redor de uma fogueira onde boas (hi) estórias são contadas, ao passo que, por mais aplicado que seja nosso intelecto nos fadigamos com o contínuo exercício intelectual-filosófico.

Isso se deve ao fato de que épicos, contos e fábulas nos ensinam sem percebermos a profundidade com a qual estamos aprendendo. E nessa prazerosa atividade de ouvir as narrativas espirituais encontradas nos Puranas e nos Itihasas aprendemos (com o coração e o intelecto alinhados) as mais profundas e valorosas lições da vida.

A Vibração Espiritual dos Sons Védicos

Na transmissão do conhecimento védico o indivíduo é educado para realizar a Verdade Suprema através do som, ao invés de simplesmente procurar enxergá-la. Por meio de ouvir o conhecimento védico (shravanam), recitá-lo (kīrtanam) e recordá-lo através da prática (smaranam), a vida do buscador da verdade (sadhaka) se faz perfeita.

Tal sadhaka vive e medita na unidade entre a Suprema Personalidade de Deus e a vibração dos sons védicos - que reside no coração de todos os seres vivos -, e assim purifica sua consciência das vibrações sonoras ordinárias e não espirituais[iv].

Também podemos estabelecer uma ligeira relação entre a função purificadora da consciência que Puranas e Itihasas apontam para aqueles que escutam suas narrativas e a função da catarse, ou purificação das emoções, na tragédia como espécie ou gênero da poesia dramática clássica grega.

Aristóteles em sua obra Poética define a catarse como uma das funções da literatura. Trata-se da experiência purificadora emocional e psicológica vivida pelo espectador, ouvinte ou leitor da boa obra literária ou dramática. Vyasa, o compilador da literatura védica, também teve a intenção de promover uma experiência transformadora no ser humano através dos Puranas e do Mahabharata.

De acordo com sruti e smrti os Puranas e Itihasas são considerados o quinto Veda: itihasapuranam pañcamam vedanam[v]. Através dessa citação dos shastras podemos compreender um dos motivos pelos quais a Bhagavad Gita – que é um capítulo de um Itihasa (o Mahabharata) - também ser conhecida como Gta Upanishad.
Do ponto de vista das escolas tradicionais do pensamento védico, Vyasadeva e seus discípulos são, de fato, os compiladores originais dos Vedas, Puranas, Itihasas e Upanishads. Entretanto, muitos estudiosos tem atribuído autores e datas diferentes e divergentes aos muitos textos da literatura védica.

O objetivo desse artigo não é por em discussão as diversas opiniões acerca de uma real posição historiográfica das obras literárias em questão, mas abordar a singularidade e total relevância da mensagem espiritual contida nos Puranas e épicos como o Ramayana de Valmiki e o Mahabharata de Vyasa[vi]. A riqueza de tais narrativas em dimensões estética, moral e filosófico-espiritual é indiscutível. Escutá-las e refletir sobre suas mensagens é de grande benefício para crianças e adultos, leigos e literatos.

Grandes mestres de diferentes escolas do conhecimento védico foram educados na mensagem espiritual de Krishna através da Bhagavad Gita e do Bhagavat Purana; nas complexidades e sutilezas do dharma a partir das tensões morais vividas pelas personagens do Mahabharata e do Ramayana.

Todos nós concordamos que a boa narrativa literária, a boa literatura é aquela que, entre muitos fatores, é capaz de educar o indivíduo para os valores humanos e espirituais. Educar para o Ser. Educar para os verdadeiros valores da liberdade. Entre as grandes obras literárias de todos os tempos e culturas reconhecemos aquelas cuja contribuição é trans-histórica, nos leva para além de seu tempo e de sua circunferência, nos conduz a uma realização profunda da vida.

O legado literário deixado por Vyasa e Valmiki não se restringe às fronteiras geográficas ou religiosas da Índia, sua validade é universal e o seu destino é o coração de toda a humanidade. Contemplar a mensagem dos Vedas através das narrativas dos Puranas e Itihasas, sem dúvida alguma, constitui um meio eficaz de purificarmos nossa consciência (svadhyaya) e de mergulharmos nas profundezas do atma.

O antídoto para a ignorância é o conhecimento. E o caminho para a libertação do samsara é a ousadia de uma vida inspirada nas lições e na conduta dos sábios como encontradas em tais textos védicos que são aprazíveis aos nossos ouvidos, intelecto e alma.



[i] Narrativa Literária.

[ii] GERTZ, Clifford. Nova Luz sobre a Antropologia; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2001. capítulo 9 Um ato desequilibrador: A Psicologia Cultural de Jerome Bruner. Página 169.
[iii] Prabhupada, A.C. Bhaktivedanta Swami. srimad Bhagavatam 1.4.17-25. – São Paulo: The Bhaktivedanta Book Trust ed.; 1995.
[iv] srimad Bhagavatam 12.6.37-41.
[v] Chandogya Upanishad 7.1.2 .
[vi] LOPES, Edward. Metáfora – da retórica à semiótica: Num mundo como o de hoje, de raciocínios algébricos, e onde os valores supremos são a máquina e a automação; e onde o pensamento ameaça converter-se em atividade cibernética de robô, é preciso saudar tudo aquilo que contribua para destruir as unidades ideológicas, para manter o homem no mundo passional do homem, no espaço dos saberes problemáticos, da dialética, da argumentação e do debate, da intuição e do sentimento, das probabilidades e das crenças, da ficção, do mito e do sonho; esse é o mundo humano; e esse ainda é – felizmente – o mundo das figuras, um mundo metafórico..